sábado, 6 de fevereiro de 2016

Do Projeto,Alma Feminina : Havia um homem ...



Havia um homem ... como em qualquer conto.
Havia um homem,sim.
Soberbo e angustiado.
Que nada admitia.
Muito orgulhoso.
( Eu acreditava nisto.)
Ele encobria-se,sem máscaras antigas carnavalescas.
Seu sorriso era um disfarce,moldado naquele rosto de cera.
Mais parecia ícone de museu.
Sem cor nenhuma,ou melhor,cor de cera ...
Eu o via todas as manhãs,na sua varanda.
Pensava ... esse homem não deve ter veias ou sangue.
Vezes sorria amarelo,num abre e fecha de boca,em movimentos contínuos.
Naquela manhã,mamãe mandou-me à sua casa ...
Teria de entregar uma encomenda da senhorinha,mãe dele.
Relutei um tanto,mas a curiosidade era contundente.
( Coisas de crianças que tornam-se valentes.)
Parei no portão e espichei o olho ...ele não estava na varanda ...e eu perderia a oportunidade de ver bem de pertinho,aquela figura humana,esquisita.
Bati palmas,insisti bastante ...e,nada.
Não tive dúvidas,empurrei o portão bem devagar pra não ranger ...e,fui espiando as janelas ...uma a uma. E,na penúltima,lado esquerdo,lá estava ele ... comia qual criança,em colheradas dadas,de sopa,por sua mãe.
Ela enxugava pacientemente a boca,o queixo,vezes a roupa,atingida pela comida.
Ele,desconexo ...
Escondi-me ao vê-la sair de prato vazio nas mãos.
Levei alguns minutos e numa atitude corajosa,meti a cara de novo na janela.
Fiquei em choque.Seu olhar,cruzou com o meu.
Eu,hipnotizada,não conseguia desviar o meu.
Entre trejeitos estranhos,sabe,aqueles que mencionei?Ele me acenou.
Nem sabia se era aceno ou tremor involuntário.
Ele sorriu ...e era um sorriso estranho,que jamais verei outra vez,creio.
Tive medo.
Um monstro que comia,qual nenê?
Mas os seus olhos,ahhh  ... que lindos eram ...de um azul-céu,de verão.
Eram serenos,e não combinavam com seu corpo.
Fugi.
Todas as semanas o via de longe.
Um dia,vi de longe, a enxugar lágrimas,sua mãe.
E também num dia,que nem sei qual ...fui falar com a senhorinha e ela contou-me sua história.
Sabe,coisa de cabeça de menina?
Levei em conta o que mais gostava,que eram as estórias, que mamãe me contava ...e ofereci a ela contar estórias a ele.
(Achando que talvez ele ficasse feliz,dividindo meus tesouros ...)
Aceitou ...
Eu ia todas as tardes,ler estórias.
Ele?
Falava com os olhos.Sua boca,só tremia,e alguns balbucios se escutava.
Eu não tinha mais medo.Sabia que ele tivera um derrame,fui procurar me inteirar nos livros.
Um dia,inventei uma estória.
( Da menina,que contava estórias.)
Ele olhou-me tão profundo,tão profundo,que chorei ... ele,também.
Na semana seguinte,vi um reboliço por lá ... um corre-corre de vizinhos  ...
Corri também ...ele estava lá sentado ...olhos parados como em choque ...sua mamãe,
tão amada,havia falecido,mal súbito.
Depois do funeral,vi, empurrarem sua cadeira de rodas ... colocaram-no num carro de passeio e eu nunca mais o vi.
Chorava e não entendia,porque o Senhor meu Deus levara meus amigos.
Mamãe tentava me convencer,que chegara a hora da senhorinha,Dona Genoveva.
E,que o Pedro,teria ido pra longe da capital,pra casa de parentes.
( Mas ninguém sabia pra onde,exatamente.)
Anos passaram-se.
Desenvolvi uma Oficina de Contos,Mambembe,que roda por escolas,praças,hospitais ...
Estímulos para gostar-se de ler,escrever,contar e,ou "entreter"dores.
Temos uma equipe de voluntários.
Eu,formei-me .
Mas não pensem,que sou uma professora.
Sou uma médica,mas contadora de estórias.
Sou oncóloga e lido com crianças,pediatra.
E,busco levar pra cada olhar, conforto, tal qual a serenidade,beleza,a nobreza, de um olhar,que tanto me encantou um dia.
( De Dona Ge.)
Sabe de quem falo,não?
Do homem, que julguei ser de cera, mas anêmico,parkinsoniano,sequelado mais ainda, por um derrame cerebral e de sua mãe,tão dedicada.
Hoje, bem sei de tudo isso.
Hoje bem sei ... e,sei a quê vim ao mundo.
Pedro,Genoveva e mamãe,só me deram um empurrãozinho.

 Dra.Clara
( Uma Alma Feminina.)
Do Projeto Alma Feminina,por Tata Junq.


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